domingo, 29 de dezembro de 2019

Igratidão?


A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei. Romanos 13:8

Quem não repudia e acha um absurdo quando alguém resolve “jogar na cara” tudo que fez ou deu para alguém? Desde um presente, um prato de comida, uma estadia, um emprego, qualquer coisa que use para cobrar gratidão de alguém depois pela sua “enorme” bondade?

Quando adolescente eu ouvia muito depois de uma briga qualquer uma lista enorme e decorada de boas ações em meu benefício; uma pessoa em específico tinha um dom de não esquecer nem do menor objeto que tenha dado, e sacava como lembrete em qualquer oportunidade. Mas qual era mesmo o motivo da briga? Nunca tinha a ver com nenhuma rejeição a algo que tenha sido dado, mas era como se o presente ou favor fosse alguma garantia de blindagem contra qualquer ofensa posterior contra o beneficiado, impedindo-o de reagir.

Naquela idade eu também ficava tentando entender, porque cabia só a mim entender os motivos de todos, e o inverso não valia? Por que os meus motivos não eram justos? Hoje eu me entendo. Li recentemente o livro Terapia de Guerrilha do Italo Marsili. O autor possui uma linguagem com a qual particularmente me dou bem, sem mimimi, curto e grosso. Para quem se ofende fácil com palavras não recomendo. Mas se você aguenta firme sem pegar pilha, fica a dica. No livro existe um capítulo chamado: Ninguém te deve nada, que diz:

Eis o que você tem que fazer: pare de reclamar e realmente, com calma e gratidão aceite o “ninguém te deve nada”. Saiba que você existe por benevolência de Deus, e cá nesse mundo não está para receber e receber e receber, mas para dar e se dar. Para se entregar com serviço, constância e amor. Que não foi posto aqui para receber coisa nenhuma. Se alguém lhe dá algo, receba-o com alegria. Se alguém lhe tira algo, entregue-o com generosidade. Eis a receita da vida. Receba com alegria e entregue com generosidade. O fundamento de sua existência é a benevolência, e seu destino final e inescapável (como de todos sobre a Terra) é a cova. Seu corpo, porém – não o espírito. É ninguém lhe deve nada quando se trata de nutrir o espírito.”

Todos que são muito apegados a coisas materiais ou a dinheiro dado, para ficar cobrando ou lembrando o dito cujo que deu aquilo no fundo está dizendo: “olha como eu sou boazinha seu ingrato!” “Olha como eu sou generosa e você não reconhece!” “Sou um exemplo de ser humano do bem e ninguém valoriza!” Ou seja, “não fosse em mérito próprio eu nada teria feito por você, é sua obrigação me reconhecer pelo que fiz, eu fiz pelo teu reconhecimento e não pelo teu bem”. Tá bom, acredito que a mensagem passa no inconsciente de muitos, que talvez nem sejam capazes de se reconhecer na imagem que passei. O que não muda nada.

Eu tinha esse problema em relação a amizades, eu me apegava a pessoas e quando por qualquer motivo que nunca ficava claro elas se afastavam, eu me sentia descartável, o que fez eu me identificar muito com a imagem deste post que achei no Google e tenho guardada há anos. Eu sentia que elas me deviam algo, afinal lhes dediquei meu afeto e minha confiança, minha atenção e meu carinho, e não merecia uma satisfação pelo afastamento? Não, não merecia, porque ninguém me deve nada. Não cabia a mim ficar julgando o que se passava na consciência de fulano ou beltrana. O que eu poderia fazer em relação ao que se passa na mente dos outros? Nada. O que pude eu fiz, pedi uma satisfação, se não foi dada, paciência! Reclamar, como Italo Marsili bem explica no livro, empobrece o espírito. Não ter pena de si mesmo é um grande remédio.

E não foi nada fácil – e ainda me pego nessa roubada vez em quando – sair do vitimismo, de ter sido criada como uma menina doente que não podia sair sozinha e que dependia sempre de alguém para fazer qualquer coisa. O que mais existia era gente com uma lista enorme de favores em meu benefício, e eu não podia nunca me irritar com elas que o resultado era previsto. E eu sei, que este sentimento em relação às amizades é resquício do comportamento de reagir como beneficiário legal da troca por ter dado algo, mas não precisa ser assim. Que Deus guarde todos os amigos que se foram e eu não sei por quê. Tenho outros que estão por aqui há anos, e novos que irão chegar. Estamos aqui de passagem e ninguém deve nada a ninguém. 
Sempre podemos crescer e viver para nutrir o espírito. 

Finalizo com algumas passagens do livro sobre perdão, que indiretamente tem muito a ver com o assunto tratado:

"Antes de dar a outra face, dê a cara a tapa".

"No peito do fraco que perdoa, sempre nasce o ressentimento".

"Porque, se começarmos a tentar julgar o indivíduo sem os elementos necessários, e perdoá-lo estando por baixo, o resultado será fingirmos uma superioridade que não temos. E quem finge torna-se um falso. E os falsos estão fritos".

"Muitas vezes, o remédio é afastar-se e (por ora) pronto."

"Vou lhe dar a letra: não tem de perdoar coisa nenhuma. Você tem de não julgar, ficar forte e ser útil para alguém. Pronto. A partir daí, quem sabe, o perdão comece a ser uma demanda para o seu coração. Até então, você não tem de ficar perdoando, não. E sabe por quê? Porque ninguém precisa do seu perdão, meu filho. Tanto faz, como tanto fez. Dane-se. Gente fraquinha, que está por baixo - ou porque a vida lhe passou por cima, feito um rolo compressor; ou porque é um lerdo, um preguiçoso - não tem que perdoar ninguém. Ou melhor dizendo: ainda não precisa perdoar."

"Agora, e o gerador de boletos (adolescente) pode perdoar alguém? E alguém precisa do seu perdão, meu filho? É ridículo."