Na última semana fui desafiada a
agregar novas palavras ao meu léxico habitual, sendo que a cada dia ao menos um
vocábulo diferente deveria acrescentar-se ao uso, e não apenas ao conhecimento
intelectual, como a tão citada “inconstitucionalissimamente” que, segundo minha
modesta opinião, é um desperdício de caracteres sem nenhuma utilidade, mas que
não deixa de ser uma palavra diferente.
Abri o primeiro livro e o
instinto me levou a esquadrinhar as frases e orações até descortinar a primeira
palavra estranha a outras leituras: voragem. Tão estranha que até então não sei
como aplicá-la num texto, senão usando-a como objeto de estudo, e não como
parte integrante do texto como as cento e dezoito palavras usadas até então.
O trecho encontrado é o que
segue:
“Esse grupo familiar que não escolhemos e nos define tanto pode ser um
ponto confiável de onde partimos e ao qual podemos retornar, ainda que em
pensamento. Aquele lugar que será sempre o meu lugar, mesmo que eu já não viva
nele.
Mas é necessário cortar com o que ele eventualmente tem de sufocante:
pois pode ser também jaula, voragem, fundo de poço. Se ficarmos demais presos,
teremos de nos puxar pelos próprios cabelos para outro espaço onde mesmo com
susto e incerteza a gente possa respirar e decidir o que fazer agora.”
LUFT,
Lya. Perdas & Ganhos, p. 29-30. Record - 2004
Munida de um dicionário não fiquei
mais esclarecida a respeito desse abismo insondável que é essa tal palavra voragem. Em outras pesquisas descobri
que minha agonia não era solitária, outro autor compartilha da mesma dúvida: “Espio no dicionário seu significado oficial,
tentativa inútil de exorcizar o encantamento maligno. O que leio inquieta ainda
mais: ‘Aquilo que sorve ou devora’. E vejo um redemoinho lamacento de areias
movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso, numa
vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. ‘Qualquer abismo’ —
continuo a ler.”
Caio Fernando Abreu, mestre em
Letras, fascinado pela mesma palavra, em seu livro Pequenas
Epifanias, lançou mão do mesmo artifício que eu a respeito desta palavra,
embora eu não creia que ele não soubesse uma melhor forma de aplicá-la, como de
fato eu não sei. Não que eu não compreenda o seu significado, mas como Abreu
também cita em sua crônica: “Queria tanto
poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber.
Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não — sem
esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela,
a palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto para
corromper o ar com seu som perverso.” Coisas de poetisa que noutras
ocasiões já deparou-se com palavras desconhecidas que casaram muito bem e sem
maiores dificuldades com a ideia que se
buscava exprimir.
Prosseguindo a minha busca, eis
que me surge outra palavra: vicejar. Esta,
por dedução, tentei significar, achei que seria algo derivado de víscera, visceral
que quer dizer, em sentido figurado, intenso. Ignorei o “s” antes do “c” que há aqui
e não acolá. Fui de tal modo insipiente (outra palavra recém descoberta), que
não me lembrei da palavra viço, de onde adequadamente deriva o verbo vicejar,
tornar viçoso. Independente do ato falho ao precisar a acepção do verbo vicejar,
a etimologia (velha conhecida) é um dos recursos muito utilizados por mim na
hermenêutica, ou seja, na interpretação das minhas leituras ou mesmo do
contexto oculto das palavras, que pelo uso perderam sua definição original.
Certa vez, numa aula, a
professora falava sobre sindicatos e suas atividades marginais, sob a opressão
da ditadura militar os sindicatos “corriam raso” pelos direitos do trabalhador.
Então para melhor compreensão (hermenêutica) recorri à etimologia e descobri os
radicais SYN- “com”, DIKÉ- “julgamento”, “justiça” e ACTUS – “ato”, “ação”;
logo, sindicato pela etimologia quer dizer “agir com justiça”, e os sindicatos
foram criados para cobrir, de certo modo, as lacunas deixadas pela CLT (Consolidação
das Leis do Trabalho) instituídas em 1º de maio de 1943 e quase inalterada
desde lá!
Dessa palavra vem outra: síndico,
todos os condomínios têm um, sendo que do latim DOMUS, “casa” vem a palavra “dono”
ou DOMINUS, que era quem comandava o local, dominava (DOMINARE). Se fossemos
usar a expressão síndico do condomínio ao pé da letra, este seria o dono do
local, quem dominaria as coisas, daí vem a imagem de déspota dos síndicos,
embora as coisas nem sempre ocorram dessa maneira, sua função é “investigar”, “julgar”
as necessidades dos condôminos.
Enfim seja adentrando a voragem,
vicejando meu vocabulário (no sentido figurado de ostentação) ou investigando o
que seria a atitude ideal dos sindicatos em sua concepção, viajar pela língua
portuguesa é um prazer do qual não me furto e no dia em que não puder seguir
viagem, sabereis que morri, definhei, e tão pouco aprendi!
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