sábado, 11 de setembro de 2010

Trecho de "O Diário de Anne Frank"

De: "O Diário de Anne Frank":


Annelies Marie Frank
Terça-feira, 1 de Agosto de 1944

Querida Kitty:



"Pequeno feixe de contradições". Foi esta a última frase da minha carta anterior e é a primeira da de hoje. "Um feixe de contradições", poderás tu explicar-me, com exatidão,o que isto quer dizer? O que é contradição? Como todas as palavras, tem dois sentidos : contradição exterior e contradição interior.

O primeiro é este: não se conformar com a opinião dos outros, quer saber tudo, quer ter sempre a última palavra, enfim: qualidades desagradáveis de que me acusam. O segundo ninguém conhece, o segredo é meu.

Já te contei em tempos que não tenho só uma alma mas sim duas. Uma dá-me a minha alegria exuberante, as minhas zombarias a propósito de tudo, a minha vontade de viver e a minha tendência para deixar correr, isto é, para não me escandalizar com flertes, abraços ou uma piada inconveniente. Esta primeira alma está sempre à espreita e faz tudo para suplantar a outra que é mais bela, mais pura, mais profunda. Essa alma boa da Anne ninguém a conhece, não é verdade?

E é por isso que tão pouca gente gosta de mim. Bem o sei: vêem em mim um palhaço divertido para uma tarde, depois toda a gente fica farta de mim por um mês. É como um filme amoroso para gente séria, uma simples distração, um divertimento, nada de especial. Não me é agradável contar-te isto, mas, por outro lado, porque não o havia de contar se é a pura verdade? Este meu lado superficial tentará sempre afastar o outro, o mais profundo, e alcançará, por isso, a vitória.

Não podes fazer ideia de quantas vezes tenho tentado repelir, espancar ou esconder esta Anne, que não passa da metade daquilo que se chama Anne; mas não serve de nada, e bem sei porquê. Tenho medo de que todos os que me conhecem, tal como costumo ser, possam descobrir o meu outro lado, o mais belo, o melhor. Tenho medo de que trocem de mim, me achem ridícula e sentimental, e não me tomem a sério. Estou habituada a não ser tomada a sério, mas é justamente a Anne mais "fácil" que suporta isso; a "mais profunda"não tem forças para tanto.

Empurro por vezes a boa Anne para a luz da ribalta, mesmo que seja por um escasso quarto de hora, mas logo que ela tem de falar, contrai-se e fecha-se de novo na sua concha, passando a palavra à Anne número 1. E antes que eu me dê conta, já a boa desapareceu. É por isso que a Anne terna e simpática nunca vem à superfície na presença das outras pessoas mas é a sua voz que domina na solidão.

Sei exatamente como gostava de ser, sei como sou... no íntimo, mas, infelizmente, só sou assim quando estou sozinha comigo. E isto é, talvez, não seguramente, a razão por que chamo à minha natureza íntima uma natureza feliz e porque os outros chamam feliz à minha natureza exterior. No meu interior, a Anne pura é que me indica o caminho; exteriormente, não passo de uma cabrita que pula de alegria e de animação.

Como eu já disse, vejo e sinto as coisas de um modo e exteriorizo-as de outro e tenho, por isso, a fama de ser uma rapariga doida por rapazes, sempre a flertar, sempre impertinente e sempre a ler romances. A Anne alegre ri-se, dá respostas atrevidas, encolhe os ombros com indiferença como se isso nada tivesse que ver com ela, mas, ai de mim!, a Anne calada reage ao contrário. Como sou sempre franca contigo, vou confessar-te que tenho pena, que me esforço terrivelmente por me modificar, mas que luto sempre contra forças superiores às minhas. Dentro de mim uma voz sussurra: -Vês o resultado? Más opiniões a teu respeito, caras trocistas e consternadas, gente que te acha antipática, e tudo isto porque não queres ouvir os conselhos do teu próprio lado bom.

Ai! Bem os queria eu ouvir, mas não pode ser; quando estou calada e séria, todos pensam que estou a representar uma nova comédia. Para me salvar só me resta dizer uma piadinha. (...) para, em seguida, censurarem o meu mau génio. Não suporto semelhante coisa. Quando me tratam desta maneira, torno-me ainda mais impertinente, fico triste e, por fim, viro o meu coração do avesso- o lado mau para fora, o bom para dentro-e continuo a procurar um meio para vir a ser aquela que gostava de ser, que era capaz de ser, se... sim, se não houvesse mais ninguém no Mundo.

Tua Anne M. Frank

Post scriptum: Como poderia deixar de citar o último capítulo manuscrito da vida de Anne Frank, quando o mesmo diz tanto de mim, ao mesmo tempo que trata de uma realidade tão distante da minha... Como o trágico acrescenta beleza à vida!


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