Na era dos filmes tecnológicos, com efeitos especiais e mega-elenco, a singeleza do cinema francês veio de encontro à poesia que move a vida do ser humano. O filme “Coeurs” (Corações) do diretor Alain Resnais, com roteiro adaptado da peça teatral do inglês Alan Ayckbourn, gira em torno de seis personagens, três homens e três mulheres solitários em Paris, em pleno inverno congelante. Um filme muito bem avaliado pela crítica e que se encontra há mais de três anos em cartaz nos cinemas do Brasil com o Título: Medos Privados em Lugares Públicos.
Com pouco mais do que quatro cenários, um escritório imobiliário, dois apartamentos e o bar iluminados pela luz neon onde Lionel (Pierre Arditi ) trabalha. Um homem viúvo, que mora com o pai acamado (personagem que não aparece no filme, ouvindo só sua voz), e convive com a rotina inconstante de enfermeiras que não agüentam o mau-humor do idoso. Uma delas, porém, sobressai-se no encargo: Charlotte (Sabine Azéma).
Uma moça cristã num primeiro momento, que guarda segredos cheios de luxúria, que se revela num primeiro momento pela suspeita de seu outro patrão, da imobiliária, Thierry (André Dussollier) , que encontra cenas de uma moça de lingerie se excitando nas fitas de VHS que Charlotte lhe emprestava frequentemente.
A fantasia dele durou até ele ser flagrado por sua irmã mais nova Gaëlle (Isabelle Carré), uma moça também aparentemente moralista, que condena o ato do irmão como uma falta de pudor. Gaëlle, no entanto é um dos vieses mais solitários da trama, como citarei mais adiante. Na casa de Lionel, Charlotte como enfermeira tentou ser prestativa, mas o idoso agredia-a chamando-a de feia, e exigindo uma mulher voluptuosa.
A imobiliária onde trabalha Thierry e Charlotte prestava serviços ao casal em crise Dan (Lambert Wilson) e Nicole (Laura Morante). O típico casal que não se comunica mais após o casamento, onde o marido, ex-militar do exército, destituído por corrupção dos seus subordinados, perde o seu epicentro, e a mulher orgulhosa demais para compreender a decepção interna do esposo, cobra-o demais, exigindo-lhe que arrume um emprego.
Mas é no balcão onde trabalha Lionel que Dan vai chorar suas mágoas, e é de quem recebe um conselho: “separe-se e arrume outra.” Após ouvir atentamente o conselho de Lionel, Dan volta pra casa, rompe com a esposa que também já estava decidida pela separação e coloca um anúncio no jornal procurando uma companheira. Então ele passa a ser Martin, e encontra Sophia. Uma moça que desde o início do filme aparece sentada num banco de restaurante a espera de alguém que nunca vem.
Martin, o primeiro a chegar até ela, surpreende-a por ter descrito exatamente como era, o que foge do comum em situações como esta. Martin e Sophia formam um casal muito interessante, eles se esquecem enquanto estão juntos que são os melancólicos Dan e Gaëlle.
Neste momento os espectadores passam a torcer pelo romance dos dois, pois só agora a luz ilumina a verdadeira face dos personagens, e quando eles fingem ser quem não são é que se tornam mais autênticos.
Dan junto a Nicole era um alcoólatra que bebia pra esquecer o calvário que seu casamento se tornara depois de perder sua carreira no exército, como ele explica a Gaëlle. Nicolle por sua vez, insurge-se como se fosse a tela opaca que escondia o glamour de Dan, e do mesmo modo como fez enquanto casados, Nicolle ao aparecer de surpresa no local do segundo encontro de Dan e Gaëlle, acaba por atrapalhar o provável romance dos dois.
Lionel avisa-o que Gaëlle o vira com Nicolle, mas é tarde. Ele não sabia seu verdadeiro nome, nem seu endereço ou telefone. A trama termina num molde incomum aos americanos... Sem o feliz pra sempre! No entanto a poesia que envolve todas as cenas, inclusive a última, onde dois irmãos decepcionados se encontram Gaëlle e Thierry. A primeira por se achar enganada por Dan, o segundo porque a última fita VHS emprestada por Charlotte não possuía cenas excitantes. É quando Gaëlle chega e recosta a cabeça no ombro do irmão.
É um roteiro simples, que prende nossa atenção pelos pequenos detalhes, pela beleza da neve, das cores, das relações humanas, e que deixa o final todo aberto ao sabor do público, onde Charlotte pode passar a seduzir Lionel como fazia com Thierry.
Gaëlle pode ou não reencontrar Dan, Nicolle também pode reencontrar sua paixão por Dan. A solidão num inverno em Paris, não dói mais que em qualquer outro lugar, mas é muito mais poético!
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