Alice no País das Maravilhas do diretor Tim Burton, é um filme que já nasceu repleto de preconceitos. Primeiro pela falsa ideia de que se trata de um roteiro puramente infantil, coisa que nem os livros originais de Lewis Carrol são. Segundo por dizerem ser um filme para meninas.
Através das cenas nonsenses de Alice, Carrol fez críticas ferrenhas à sociedade britânica do século XIX. Críticas que se arrastam até o século presente, e dizem respeito a todas as sociedades ocidentais, conservadoras, escravas da rotina, do tempo, cada vez mais envelhecidas nas suas crenças.
Confesso que não tinha muita intimidade com as histórias de Alice, nunca havia feito uma análise sobre o tema, pois só conhecia algumas tiradas como o "estou atrasado" do coelho branco e "cortem-lhe as cabeças" da rainha vermelha (ou rainha de Copas, na versão original de Carrol). Sendo que só estas tiradas já dão pano pra manga!
É muito comum ouvir frases como "estou atrasado" ou "estou ocupado" diariamentte. Que geralmente vem de pessoas condicionadas ao tempo, à obrigação de serem sérias, e muitas vezes tornam-se automatizadas, afastam-se da condição humana e tornam-se máquinas.
"Cortem-lhe a cabeça" no século XIX fazia alusão as decaptações frequentes daqueles que discordavam de alguma forma do despotismo imperial. Atualmente funciona como metáfora contra a razão. "Tirem-lhe a razão!" Gritam as rainhas vermelhas de hoje, e a forma de decaptar é através da desmoralização de indivíduos e ideias que contrariam as elites (isso soou meio comunista... O comunismo vermelho também pretendia desmoralizar a burguesia e cortar-lhes as cabeças!).
Alice na versão cinematográfica, é uma releitura das duas obras de Lewis Carrol Alice no País das Maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou lá; é uma síntese de algumas ideias centrais. Ao contruir a personagem principal aos 20 anos, diferente da original que não passa de 7 nos dois livros, Tim Burton não ficou devendo em nada à essência de Alice, pois manteve na jovem a pureza e o frescor da criança, sem contar os traços angelicais de Mia Wasicowska.
O repúdio aos códigos de conduta vigente, mostrados logo na primeira cena em que a jovem aparece, quando se recusa a usar espartilho e meias como julgam adequado,e Alice lança a frase: "se fosse adequado usar um bacalhau na cabeça, você usaria?" Mostra o lado sapeca, cheio de razão, embora fora dos padrões das crianças.
Alice é levada a Wonderland pelo coelho branco (dediquei um post a simbologia do white rabbit), a personagem mais parecida com as pessoas reais, justamente por viver em função do relógio. Lá encontra situações e figuras típicas do mundo dos sonhos.
O chapeleiro maluco (Jonnhy Deep) que na versão original tem menor importância na história e é um contador de enigmas, no filme ganha maior destaque e atém-se a um único enigma, que ao final ele mesmo revela não fazer a mínima ideia do que significa.
O chapeleiro com suas maluquices peculiares, e extravagância (fora a beleza plástica da personagem), me causou profunda empatia. Pessoas autênticas, poéticas e sensíveis são muitas vezes tomadas por loucas e são marginalizadas, daí sua quase irrelevância na trama original de Alice no País das Maravilhas. Chapeleiro propositalmente, já que estes profissionais na época eram acometidos por distúrbios neurológicos devido a intoxicação por mercúrio, que lhe exigia o oficio.
O chapeleiro original justificava seus enigmas de maneira insatisfatória, Tim Burton atribuiu-lhe a dignidade de admitir que não fazia a menor ideia do que dizia, coisa que muitos "sábios" também não fazem ideia, porém não admitem.
Alice é minha mais recente pérola adquirida de Hollywood. Através do filme penetrei na terra das maravilhas e descobrí que lá também existe o bem e o mal, só que tudo é reversível se cultivarmos o hábito de acreditar em seis coisas impossíveis no café da manhã...
Post Scriptum: Por que Alice atravessou séculos como sendo um conto infantil?
Porque somente as crianças, ou quem cultiva certa innocence, sabe ler nas entrelinhas sem precisar que os críticos lhe expliquem. Aos adultos os fatos históricos, às crianças o mundo, a beleza, a poesia - presença constante nos livros e que é compensada pela estética do filme.
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